II.






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«Não sei, que mundo será o vosso.É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutamos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação ao respeito por se estar vivo.
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Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, e foram mal tratados por serem fiéis a um pensamento, a uma esperança, ou muito apenas ao amor irrespondível que lhes roía as entranhas. Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
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Acredito que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto o que mais importa – essa alegria. Acredito que a dignidade em que hão-de falar tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá. Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença.
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Nenhum Juízo Final, pode dar-nos aquele instante que não vivêmos, aquele objecto que não fruímos, aquele gesto de amor, que fariamos “amanhã”. E, por isso, o mesmo mundo que criamos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram.»


Jorge de Sena.